Acabo de voltar da Festa Literária Internacional de Paraty . Em função das notícias que nos chegam diariamente por intermédio da imprensa, não ando muito animada em falar das parcerias público/privadas no Brasil. Seria, no entanto, um grave erro por omissão , não levar até vocês os meus comentários sobre a FLIP.
Há muito queria participar dessa festa. Todo ano, no entanto, um vento obliquo me arrastava para longe dela. Vocês sabem que em se tratando de Literatura, sou uma feroz devoradora de livros de poesias e uma pouco voraz consumidora de prosa. Tenho tomado várias iniciativas para melhorar a minha relação com o gênero e a ida à Flip seria fundamental. Uma outra iniciativa vem sendo ampliar a parceria com minha amiga Zezé . Faço escambo com ela de indicações de romances por indicações de poemas e indicações de vinhos por indicações de filmes, mas isso é uma outra história .
Em que pese a excitação e a grande expectativa que eu tinha em relação a festa deste ano , devo dizer que há muito não era surpreendida tão positivamente por um evento nesse país. Tudo bem, foi a minha estréia, o homenageado era Machado de Assis etc, mas mesmo assim, é preciso reconhecer que aquela festa é uma tentativa de "cultura para todos", ainda que dentro dos limites de um Brasil pródigo em diferenças sociais.
Senão vejamos:
Na tenda dos autores, ingressos a 25 reais com direito a fazer perguntas e a ter contato direto com os convidados. Na tenda do telão, ingressos a 8 reais, sem contato direto com os expositores. Em volta da tenda do telão, a ausência de tapumes, permitia que a legião dos "sem ingressos" pudesse assistir às palestras de pé ou sentados nas rampas e degraus. Mais adiante a Flipinha , com literatura a vontade e muitas brincadeiras para as crianças. Nos inúmeros folhetos distribuídos, eventos da " OFF Flip", da nova "Flip e etc' ' e muitos outros , deixavam tontos os participantes ávidos de cultura. Eram atividades para todos os gostos e bolsos pipocando pela cidade. Uma outra tenda repleta de livros a preços "normais" (no sentido de "sem descontos") estava lá com exemplares dos lançamentos e outros livros dos autores presentes à festa, classificados pelo número das palestras. Informação importante: os habitantes de Paraty têm acesso a TODOS os livros da FLIP gratuitamente, uma vez que ao final da feira um exemplar de cada publicação passa a constar das prateleiras da biblioteca pública do evento , que funciona o ano inteiro e já se integrou ao cotidiano dos leitores da cidade. Iniciativa soberba num país que precisa ler e mantém preços abusivos em suas publicações.
Nenhum caso de violência, nenhuma ocorrência policial relevante. Tivemos uma espécie de evento cultural dos sonhos , espargindo esperança na minha descrença . Antes que me falem ou perguntem sobre os bastidores, aviso que não sei de nada. Se podridão há , quero ficar sem saber delas por uns 15 dias, OK? Deixem que eu acredite só um pouco. Minha sofrida alma brasileira tem fome de esperança.
Era o Brasil exibindo simultaneamente alegria e competência . Era o Brasil se beijando na rua e refletindo nas tendas. Era o Brasil apoiado em tecnologia de ponta , orgulhoso da cultura caiçara. Era o Brasil consumindo cultura americana, francesa e alemã enquanto dançava maracatu sobre o luxuoso pé-de-moleque das vielas e antropofagiava as idéias nos lanches e almoços com orgulho de suas raízes. Um verdadeiro show do Brasil que queremos para muito além do futebol , assunto, aliás, tratado em mesa redonda que levava o bem sugestivo título de "Folha Seca" e que foi coroada com competente palestra de José Miguel Wisnik. Pode ter evento mais carregado de " elipses" e identidade ? Se as últimas aspas não ficaram claras para os mais jovens, sugiro uma pesquisa rápida no google sobre a vida de Valdir Pereira, nosso craque conhecido como Didi.
Passaríamos com louvor , não fosse a matéria publicada pelo jornal O Globo apontando a palestra de Tom Stoppard como a melhor da FLIP , uma palestra pífia que irritou a platéia do telão e praticamente não aconteceu, tal foi o descaso com o público pagante e com os '"sem ingresso" que lotavam todas as tendas e espaços alternativos para ouvi-lo. Penalty descarado. Não estou questionando aqui a vida e a obra de Stoppard, mas somos suficientemente pródigos em Conferencistas que fazem palestras no velho estilo " a Bangu", não precisamos importar esse tipo de mão-de-obra. Além de cara e inútil , fere a nossa dignidade.
Ao apagar das luzes, último dia da festa, um momento mágico.
Estava indo com o Dimas , querido amigo que me recebeu gentilmente em sua casa e a quem serei eternamente grata, a um coquetel de despedida da Flip na casa de uma moradora de Paraty. A casa ficava localizada numa esquina afastada e escura nos limites do Centro Histórico e era uma daquelas construções de arquitetura encantada, com portas e janelas amarelas e azuis, 3 degraus acima do nível do mar na entrada, para que a maré ao subir não atinja o nivel da sala e um jardim interno cheio de plantas e limos que estimulavam em todos uma avalanche de interjeições e adjetivos. Uma daquelas maravilhas da cidade! Quando estávamos quase chegando à porta, vimos deslizar das sombras de um beco próximo, um charmoso homem caminhando lenta e pensativamente. Trajava um elegante casaco e as mãos estavam ao abrigo do vento frio da noite , dentro dos bolsos. Os cabelos grisalhos e desalinhados davam à sua aparência uma espécie de versão pós-moderna de anjo barroco. Quando o lampião iluminou o rosto, uma voz com sotaque italiano, acompanhada de contido aceno de mão sussurrou:
- Ciao!
Respondemos com certa intimidade brasileira:
- Tchau!
Nos despedíamos ali de Alessandro Baricco, autor de SEDA, delicado livro recentemente degustado por indicação da Zezé, numa só longa noite, tamanho o fascínio que me despertou a história e o estilo do autor. Mais uma vez obrigada querida.
Ali estava ele, a um passo de nós, sem receio da noite estrangeira, dizendo adeus às encantadoras vielas da cidade, misturado aos inúmeros cães sem dono que vagueiam e dormem à noite nos umbrais dos velhos casarões. Caminhava de maneira simples e elegante, como a trama do seu surpreendente livro. Um inesperado e inesquecível encontro poético de fim de festa.
Bem meus queridos, muitos de vocês mais aquinhoados pela sorte do que eu , certamente já frequentaram a FLIP antes e puderam testemunhar situações semelhantes. A cidade de Paraty é nossa já conhecida pérola. Sediando esse evento, se transforma num tesouro de idéias e doces reflexões entre a Serra do Mar e o Atlântico. A Flip é o evento cultural mais elegante do qual já participei nesse pais e, segundo alguns autores presentes, um evento literário único no mundo. Tudo bem, a idéia não foi nossa, foi estrangeira, mas soubemos absorvê-la com dignidade e competência. Até hoje ouvimos críticas à sua concepção, mas convenhamos, o que quer que se diga não diminui o brilho da festa. Precisamos zelar por ela . Precisamos também, quem sabe, gerar outros eventos semelhantes. Nossa auto-estima agradece. Talvez um encontro reunindo artistas de todos os matizes e intelectuais de diferentes áreas do conhecimento, com palco interditado para políticos , chamado quem sabe de "A REDESCOBERTA DO BRASIL" ou "A REINVENÇÃO DO BRASIL", sediado em Santa Cruz Cabrália, mais precisamente em Coroa Vermelha, que tal? Oxalá pudéssemos reencontrar por lá não só a semente de nossa fé, como também a nossa urgente, bela e necessária destinação. Regra fundamental do encontro : implorar que nossos talentosos Artistas e Intelectuais esqueçam em casa seus apoteóticos egos.
Tudo bem, já sei que sonhei alto demais, mas sonhar ainda não custa nada e nem se configura como crime.
Lamento não tê-los visto por lá. No entanto, como diria Juquinha, um velho e querido amigo que perdi vitimado pela violência de nossas cidades, ANTES TARDE DO QUE MAIS TARDE.
Até a próxima FLIP.
Beijos
Há muito queria participar dessa festa. Todo ano, no entanto, um vento obliquo me arrastava para longe dela. Vocês sabem que em se tratando de Literatura, sou uma feroz devoradora de livros de poesias e uma pouco voraz consumidora de prosa. Tenho tomado várias iniciativas para melhorar a minha relação com o gênero e a ida à Flip seria fundamental. Uma outra iniciativa vem sendo ampliar a parceria com minha amiga Zezé . Faço escambo com ela de indicações de romances por indicações de poemas e indicações de vinhos por indicações de filmes, mas isso é uma outra história .
Em que pese a excitação e a grande expectativa que eu tinha em relação a festa deste ano , devo dizer que há muito não era surpreendida tão positivamente por um evento nesse país. Tudo bem, foi a minha estréia, o homenageado era Machado de Assis etc, mas mesmo assim, é preciso reconhecer que aquela festa é uma tentativa de "cultura para todos", ainda que dentro dos limites de um Brasil pródigo em diferenças sociais.
Senão vejamos:
Na tenda dos autores, ingressos a 25 reais com direito a fazer perguntas e a ter contato direto com os convidados. Na tenda do telão, ingressos a 8 reais, sem contato direto com os expositores. Em volta da tenda do telão, a ausência de tapumes, permitia que a legião dos "sem ingressos" pudesse assistir às palestras de pé ou sentados nas rampas e degraus. Mais adiante a Flipinha , com literatura a vontade e muitas brincadeiras para as crianças. Nos inúmeros folhetos distribuídos, eventos da " OFF Flip", da nova "Flip e etc' ' e muitos outros , deixavam tontos os participantes ávidos de cultura. Eram atividades para todos os gostos e bolsos pipocando pela cidade. Uma outra tenda repleta de livros a preços "normais" (no sentido de "sem descontos") estava lá com exemplares dos lançamentos e outros livros dos autores presentes à festa, classificados pelo número das palestras. Informação importante: os habitantes de Paraty têm acesso a TODOS os livros da FLIP gratuitamente, uma vez que ao final da feira um exemplar de cada publicação passa a constar das prateleiras da biblioteca pública do evento , que funciona o ano inteiro e já se integrou ao cotidiano dos leitores da cidade. Iniciativa soberba num país que precisa ler e mantém preços abusivos em suas publicações.
Nenhum caso de violência, nenhuma ocorrência policial relevante. Tivemos uma espécie de evento cultural dos sonhos , espargindo esperança na minha descrença . Antes que me falem ou perguntem sobre os bastidores, aviso que não sei de nada. Se podridão há , quero ficar sem saber delas por uns 15 dias, OK? Deixem que eu acredite só um pouco. Minha sofrida alma brasileira tem fome de esperança.
Era o Brasil exibindo simultaneamente alegria e competência . Era o Brasil se beijando na rua e refletindo nas tendas. Era o Brasil apoiado em tecnologia de ponta , orgulhoso da cultura caiçara. Era o Brasil consumindo cultura americana, francesa e alemã enquanto dançava maracatu sobre o luxuoso pé-de-moleque das vielas e antropofagiava as idéias nos lanches e almoços com orgulho de suas raízes. Um verdadeiro show do Brasil que queremos para muito além do futebol , assunto, aliás, tratado em mesa redonda que levava o bem sugestivo título de "Folha Seca" e que foi coroada com competente palestra de José Miguel Wisnik. Pode ter evento mais carregado de " elipses" e identidade ? Se as últimas aspas não ficaram claras para os mais jovens, sugiro uma pesquisa rápida no google sobre a vida de Valdir Pereira, nosso craque conhecido como Didi.
Passaríamos com louvor , não fosse a matéria publicada pelo jornal O Globo apontando a palestra de Tom Stoppard como a melhor da FLIP , uma palestra pífia que irritou a platéia do telão e praticamente não aconteceu, tal foi o descaso com o público pagante e com os '"sem ingresso" que lotavam todas as tendas e espaços alternativos para ouvi-lo. Penalty descarado. Não estou questionando aqui a vida e a obra de Stoppard, mas somos suficientemente pródigos em Conferencistas que fazem palestras no velho estilo " a Bangu", não precisamos importar esse tipo de mão-de-obra. Além de cara e inútil , fere a nossa dignidade.
Ao apagar das luzes, último dia da festa, um momento mágico.
Estava indo com o Dimas , querido amigo que me recebeu gentilmente em sua casa e a quem serei eternamente grata, a um coquetel de despedida da Flip na casa de uma moradora de Paraty. A casa ficava localizada numa esquina afastada e escura nos limites do Centro Histórico e era uma daquelas construções de arquitetura encantada, com portas e janelas amarelas e azuis, 3 degraus acima do nível do mar na entrada, para que a maré ao subir não atinja o nivel da sala e um jardim interno cheio de plantas e limos que estimulavam em todos uma avalanche de interjeições e adjetivos. Uma daquelas maravilhas da cidade! Quando estávamos quase chegando à porta, vimos deslizar das sombras de um beco próximo, um charmoso homem caminhando lenta e pensativamente. Trajava um elegante casaco e as mãos estavam ao abrigo do vento frio da noite , dentro dos bolsos. Os cabelos grisalhos e desalinhados davam à sua aparência uma espécie de versão pós-moderna de anjo barroco. Quando o lampião iluminou o rosto, uma voz com sotaque italiano, acompanhada de contido aceno de mão sussurrou:
- Ciao!
Respondemos com certa intimidade brasileira:
- Tchau!
Nos despedíamos ali de Alessandro Baricco, autor de SEDA, delicado livro recentemente degustado por indicação da Zezé, numa só longa noite, tamanho o fascínio que me despertou a história e o estilo do autor. Mais uma vez obrigada querida.
Ali estava ele, a um passo de nós, sem receio da noite estrangeira, dizendo adeus às encantadoras vielas da cidade, misturado aos inúmeros cães sem dono que vagueiam e dormem à noite nos umbrais dos velhos casarões. Caminhava de maneira simples e elegante, como a trama do seu surpreendente livro. Um inesperado e inesquecível encontro poético de fim de festa.
Bem meus queridos, muitos de vocês mais aquinhoados pela sorte do que eu , certamente já frequentaram a FLIP antes e puderam testemunhar situações semelhantes. A cidade de Paraty é nossa já conhecida pérola. Sediando esse evento, se transforma num tesouro de idéias e doces reflexões entre a Serra do Mar e o Atlântico. A Flip é o evento cultural mais elegante do qual já participei nesse pais e, segundo alguns autores presentes, um evento literário único no mundo. Tudo bem, a idéia não foi nossa, foi estrangeira, mas soubemos absorvê-la com dignidade e competência. Até hoje ouvimos críticas à sua concepção, mas convenhamos, o que quer que se diga não diminui o brilho da festa. Precisamos zelar por ela . Precisamos também, quem sabe, gerar outros eventos semelhantes. Nossa auto-estima agradece. Talvez um encontro reunindo artistas de todos os matizes e intelectuais de diferentes áreas do conhecimento, com palco interditado para políticos , chamado quem sabe de "A REDESCOBERTA DO BRASIL" ou "A REINVENÇÃO DO BRASIL", sediado em Santa Cruz Cabrália, mais precisamente em Coroa Vermelha, que tal? Oxalá pudéssemos reencontrar por lá não só a semente de nossa fé, como também a nossa urgente, bela e necessária destinação. Regra fundamental do encontro : implorar que nossos talentosos Artistas e Intelectuais esqueçam em casa seus apoteóticos egos.
Tudo bem, já sei que sonhei alto demais, mas sonhar ainda não custa nada e nem se configura como crime.
Lamento não tê-los visto por lá. No entanto, como diria Juquinha, um velho e querido amigo que perdi vitimado pela violência de nossas cidades, ANTES TARDE DO QUE MAIS TARDE.
Até a próxima FLIP.
Beijos