O carteiro estava quase ao alcance da
mão. Nunca vi tantas cartas vindo
na minha direção. Era uma pilha
enorme, com envelopes coloridos de vários formatos e tamanhos, alguns
alinhados, outros quase pulando da pilha , ansiosos pelos seus destinos. O carteiro cantarolava e
deslizava pela calçada como se fosse tempo de carnaval e a pilha um monte de pequenas plumas
coloridas . Nenhum peso! Pensei:
- Pilha grande de cartas, leve desse jeito,
deve trazer boas notícias.
Minha carta de amor certamente estaria
ali. Aquela que me faria rir
como boba, cambalear de alegria
pelas esquinas dos sonhos e da casa ,
minha carta do amor esperado, do amor renascido dos sonhos e fantasias
deterioradas, amor maduro, leal, amor delicadeza , vagareza revisitada , tesão cansado e débil , mas presente ,
esperançoso , sem culpa e , nesses malditos tempos, tesão necessariamente
seguro.
Que saudade eu estava de cartas de
amor! Digo cartas de tinta, papel,
envelope que se tem que comprar na papelaria, caneta que falha a cada pressão
particular da mão, que denuncia a
emoção do momento , carta com papel fino e delicado, que pesa pouco na balança
do correio, mas muito na do coração , com aquele montão de folhas. Carta que nunca termina, que quer
ter certeza que o outro estará por longo tempo conectado àquelas linhas , carta
com selo colado a saliva, que frequenta a fila do correio , que enfrenta os
cuidados com a chuva para não perder a palavra fundamental na mancha de água,
carta com pingo de lágrima, que passou com calma e cuidado pela dobra
certa para entrar no envelope, que
pesquisou o poema certeiro para anexar, que é relida algumas vezes antes de
enviar, que fica escondida sob as
roupas no final de semana para ter a garantia de que só o destinatário tomará
conhecimento de seu conteúdo, carta que se derrama e ama e que antes do envio se borrifa com perfume ou se anexa uma pétala de rosa ou flor
da noite.
Vendo o carteiro caminhar na minha direção,
durante segundos passei o filme das cartas de minha vida. Revi todas as vezes
que o carteiro não foi visto, revi todas as vezes em que foi visto e não parou,
revi todas as vezes em que se atrasou, pensei em todas as cartas que não
chegaram, naquelas que se extraviaram, nas que ficaram na intenção e não se
realizaram. Lembrei do cartão de natal que recebi de minha mãe pouco antes de
partir e lembrei também da parte
mais assustadora de todas: o fato
de que só você me tinha feito carta de amor do jeito que gosto. Hoje estamos em
tempo digital. Nem chamamos as
mensagens mais de cartas. Recebi
lindas, não nego. O amor também
era sincero e doce. Mas foi um
amor que veio por transportes que não vejo e caminhos que não posso tocar com
meus pés. Não gosto de
caminhos onde não posso colocar meus pés.
Afinal não foram para os pés que os caminhos foram feitos? Não foram feitos para que sentíssemos
sua textura, sua fofura ou dureza, sua umidade e relevo , para que caíssemos e
levantássemos e buscássemos as melhores passagens antes de chegarmos ao
objetivo desejado ? Tampouco
vieram pelos transportes que vejo e conheço. Tudo bem, somos seres dotados de linguagem e de mundo
simbólico, mas prefiro mundo simbólico construido sobre coisas que passaram
pelos meus sentidos. Sinto
falta de símbolos com mais consistência de símbolos . Queria uma carta que viesse por caminho que conheço, caminho
que eu pudesse pressentir os acidentes de percurso, caminho que eu pudesse
acompanhar a previsão do tempo e fantasiar os perigos escondidos nas curvas da
estrada. Caminhos cheios de
imaginação. Gostaria também de conhecer o motorista, ver a cara do cocheiro, do
piloto, do navegante , do ser no
comando do transporte que trazia a carta e, finalmente, num arremate pra lá de
saudoso, queria conhecer pelo nome e
poder dizer bom dia ao carteiro.
Como é a cara da estrada das cartas da modernidade a que nem cartas
chamamos ? Como é a cara do cocheiro que transporta meus e.mails por essas vias
digitais? E que história é essa de retalhar minhas cartas , rasgá-las em milhares de pedacinhos para
serem enviados por diferentes rotas e serem recompostos no seu destino, para que o trânsito seja mais rápido
? Que destino é esse, na verdade? Quem
disse que quero rapidez no trânsito?
Quero cartas que saiam inteiras da minha mão e cheguem inteiras ao seu destino.
Nada de picote pelo caminho por
gentes e processos virtuais que não conheço. Me aflige essa idéia de que uma máquina retalha meu texto
para recompô-lo no destino e que um pedaço vai por Nova Iorque enquanto o outro
segue pelo polo sul fazendo um pit stop na Austrália. Nunca fui à Austrália.
Não conheço o povo e suas estradas. Conheço a Austrália pela televisão, maquiada
em tempos de Olimpíada. Além disso assisti a olimpíada da Austrália no Canadá.
Sem o meu referencial de cá , com o do Canadá sem intimidade e com o da
Austrália maquiado, não é possível se ter uma idéia minimamente razoável
daquele lugar e daquelas gentes. E o pacotinho que viajará por Nova Iorque? Depois do 11 de setembro não se pode
confiar nessa rota !
Minha
carta de amor estava a caminho. O amor era garantido, sem dúvida. Não
existem dúvidas quando o amor é maduro e recíproco. Dúvida é coisa de amor jovem ou de amor antigo
cansado e já covarde, de amor enjoado, mas principalmente , é coisa de amor
magoado . Nada
disso era o meu amor. Era um amor consistente, leal e levemente
inconsequente. Generoso e cremoso com gosto de sapoti maduro . Gosto definido, claro,
inconfundível. Era amor que
cuidava do amor em tempos de guerra e de paz. Era amor demais, sem pressa, cheio de carimbos e
certificados de origem e trajetória de vida. A carta certamente vinha com cheiro de carro de boi e foi
deixada para curtir por uma semana na agência do correio, antes de chegar ao
seu destino. Pousou com o carteiro para tomar água num banco de praça, caminhou
junto com ele por caminhos tortuosos, alguns pedregosos, outros gramados, até finalmente estar ali, naquele
instante , vindo em minha direção depois de transitar sem pressa pelo seu
necessário tempo e , finalmente , passar por mim sem me olhar e
ser colocada na caixa de correio da casa ao lado.