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segunda-feira, 30 de abril de 2012

Quero uma carta perfumada

O carteiro estava quase ao alcance da mão.  Nunca vi tantas cartas vindo na minha direção.  Era uma pilha enorme, com envelopes coloridos de vários formatos e tamanhos, alguns alinhados, outros quase pulando da pilha , ansiosos pelos seus destinos.   O carteiro cantarolava e deslizava pela calçada como se fosse tempo de carnaval e  a pilha um monte de pequenas plumas coloridas .  Nenhum peso! Pensei:
- Pilha grande de cartas,  leve desse jeito,  deve trazer boas notícias.

Minha carta de amor certamente estaria ali.   Aquela que me faria rir como boba,  cambalear de alegria pelas esquinas dos sonhos e da casa ,  minha carta do amor esperado, do amor renascido dos sonhos e fantasias deterioradas, amor maduro, leal, amor delicadeza , vagareza revisitada ,  tesão cansado e débil , mas presente , esperançoso , sem culpa e , nesses malditos tempos, tesão necessariamente seguro. 

Que saudade eu estava de cartas de amor!  Digo cartas de tinta, papel, envelope que se tem que comprar na papelaria, caneta que falha a cada pressão particular da mão, que denuncia  a emoção do momento , carta com papel fino e delicado, que pesa pouco na balança do correio, mas muito na do coração , com aquele montão de folhas.   Carta que nunca termina, que quer ter certeza que o outro estará por longo tempo conectado àquelas linhas , carta com selo colado a saliva, que frequenta a fila do correio , que enfrenta os cuidados com a chuva para não perder a palavra fundamental na mancha de água, carta com pingo de lágrima, que passou com calma e cuidado pela dobra certa  para entrar no envelope, que pesquisou o poema certeiro para anexar, que é relida algumas vezes antes de enviar,  que fica escondida sob as roupas no final de semana para ter a garantia de que só o destinatário tomará conhecimento de seu conteúdo, carta que se derrama e  ama e que antes do envio se borrifa com perfume  ou se anexa uma pétala de rosa ou flor da noite.

Vendo o carteiro caminhar na minha direção, durante segundos passei o filme das cartas de minha vida. Revi todas as vezes que o carteiro não foi visto, revi todas as vezes em que foi visto e não parou, revi todas as vezes em que se atrasou, pensei em todas as cartas que não chegaram, naquelas que se extraviaram, nas que ficaram na intenção e não se realizaram. Lembrei do cartão de natal que recebi de minha mãe pouco antes de partir  e lembrei também da parte mais assustadora de todas:  o fato de que só você me tinha feito carta de amor do jeito que gosto. Hoje estamos em tempo digital.  Nem chamamos as mensagens mais de cartas.  Recebi lindas, não nego.  O amor também era sincero e doce.  Mas foi um amor que veio por transportes que não vejo e caminhos que não posso tocar com meus pés.   Não gosto de caminhos onde não posso colocar meus pés.  Afinal não foram para os pés que os caminhos foram feitos?  Não foram feitos para que sentíssemos sua textura, sua fofura ou dureza, sua umidade e relevo , para que caíssemos e levantássemos e buscássemos as melhores passagens antes de chegarmos ao objetivo desejado ? Tampouco  vieram pelos transportes que vejo e conheço.  Tudo bem, somos seres dotados de linguagem e de mundo simbólico, mas prefiro mundo simbólico construido sobre coisas que passaram pelos meus sentidos.   Sinto falta de símbolos com mais consistência de símbolos .  Queria uma carta que viesse por caminho que conheço, caminho que eu pudesse pressentir os acidentes de percurso, caminho que eu pudesse acompanhar a previsão do tempo e fantasiar os perigos escondidos nas curvas da estrada.  Caminhos cheios de imaginação. Gostaria também de conhecer o motorista, ver a cara do cocheiro, do piloto, do navegante , do ser  no comando do transporte que trazia a carta e, finalmente, num arremate pra lá de saudoso, queria conhecer pelo nome e  poder dizer bom dia ao carteiro.

Como é a cara da estrada das cartas da modernidade a que nem cartas chamamos ? Como é a cara do cocheiro que transporta meus e.mails por essas vias digitais? E que história é essa de retalhar  minhas cartas , rasgá-las em milhares de pedacinhos para serem enviados por diferentes rotas e serem  recompostos no seu destino, para que o trânsito seja mais rápido ?  Que destino é esse, na verdade? Quem disse que quero rapidez no trânsito?  Quero cartas que saiam inteiras da minha mão e cheguem inteiras ao seu destino.  Nada de picote pelo caminho por gentes e processos virtuais que não conheço.  Me aflige essa idéia de que uma máquina retalha meu texto para recompô-lo no destino e que um pedaço vai por Nova Iorque enquanto o outro segue pelo polo sul fazendo um pit stop na Austrália. Nunca fui à Austrália. Não conheço o povo e suas estradas. Conheço a Austrália pela televisão, maquiada em tempos de Olimpíada. Além disso assisti a olimpíada da Austrália no Canadá. Sem o meu referencial de cá , com o do Canadá sem intimidade e com o da Austrália maquiado, não é possível se ter uma idéia minimamente razoável daquele lugar e daquelas gentes. E o pacotinho que viajará por Nova Iorque?  Depois do 11 de setembro não se pode confiar nessa rota !

Minha carta de amor estava a caminho. O amor era garantido,  sem dúvida.  Não existem dúvidas quando o amor é maduro e recíproco. Dúvida é coisa de amor jovem ou de amor antigo cansado e já covarde, de amor enjoado, mas principalmente , é coisa de amor magoado .  Nada disso era o meu amor.  Era um amor  consistente, leal e levemente inconsequente. Generoso e cremoso com gosto de sapoti maduro .  Gosto definido, claro, inconfundível.  Era amor que cuidava do amor em tempos de guerra e de paz.  Era amor demais, sem pressa, cheio de carimbos e certificados de origem e trajetória de vida.  A carta certamente vinha com cheiro de carro de boi e foi deixada para curtir por uma semana na agência do correio, antes de chegar ao seu destino. Pousou com o carteiro para tomar água num banco de praça, caminhou junto com ele por caminhos tortuosos, alguns pedregosos, outros gramados,  até finalmente estar ali, naquele instante , vindo em minha direção depois de transitar sem pressa pelo seu necessário tempo e , finalmente , passar por mim sem me olhar e  ser colocada na caixa de correio da casa ao lado.