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segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

NO NATAL AS MEMÓRIAS SE INQUIETAM
O barulho da chuva encobria nosso silêncio naquela manhã. A vida não era fácil no subúrbio. Tudo era medido, contado, usado com parcimônia. Só as águas eram abundantes. De tudo sempre, mas pouco: carne, frango, peixe, salada, legumes frescos. Muitos ítens vindos do quintal. Passávamos restrições, nunca fome. Teríamos maxixe para o almoço, vi o pacote quando ela chegou da feira. As grandes especialidades da mãe eram: cozinhar, costurar , cantar, batucar, brincar e reprimir. Não necessariamente nessa ordem. Naquele dia, eu não pude ir à Escola. Tivera febre alta à noite. Criança entediada na minha vizinhança não via TV. Eram raras. Quem tinha compartilhava, às vezes, com os vizinhos. Era um momento especial, um evento, como uma reunião festiva entre amigos. Leitura? Só as indicadas pela Escola. Livro fora da lista escolar era coisa de gente abastada. Havia uma minuscula biblioteca pública a poucas estações de trem de casa, mas crianças não podiam ir sozinhas até lá e as mães não as levavam em dias de temporal. Dia de febre, sem biblioteca, sem escola e sem rua, era para brincar na cozinha, aporrinhar a mãe com perguntas e atrapalhar o fluxo das tarefas domésticas. Um pouco antes do almoço, ela começou a abrir o saquinho de maxixes. Pediu que eu pegasse uma caixa de fósforos. Corri para o armário próximo ao fogão. Entreguei a caixa e fiquei ao lado dela, cauda abanando, cadelinha à espera do graveto. Pegou um daqueles maxixes com rabinho. Enfiou, cuidadosamente, quatro fósforos num dos lados. Pernas. Partiu dois outros e enfiou na parte da frente do maxixe até a ponta escura. Olhos. Abriu espaço na ponta da pequena bancada. Colocou o recém-nascido ali. Rápido fez um outro, e mais outro. Trigêmeos. Normalmente a ninhada de porcos-espinhos rabudos era de um só. Em dia de chuva com febre, a prole aumentava. Ao lado, um funil de cabeça para baixo. Tenda com chaminé. Um tabuleiro com água. Lago. Uma travessinha pequena de plástico. Barco. Iniciei a travessia dos filhotes, enquanto os outros , potenciais, eram fatiados na panela sobre o refogado de tomate e cebola. As mãos dela, para mim, eram como as de Deus, estavam por toda parte. Vez por outra ela interferia e mudava o destino dos filhotes e o curso da história, bastava perceber uma fagulha de tédio nos meus olhos. Em casos extremos, um peteleco fazia um filhote cair no lago. Meu barco, que até então se deslocava lentamente, partia em velocidade para o salvamento. Entre raios e trovões, o início da tarde testemunhou dezenas de novos cenários e enredos. Ao ranger da porta de entrada , a voz da mãe pediu que me afastasse do fogão. Os irmãos voltavam da escola. Hora de banha de porco quente e frituras. Artistas de subúrbio éramos nós. Desses cuja alegria vaga pelas estropiadas vielas. Desses cuja imaginação expande o espaço exíguo. Desses que compartilham e colorem tudo, até o abandono e a escassez.