Quando era bem pequenininha, acho que lá pelos seis anos de idade, achava que existiam duendes morando nos rádios da oficina de eletrônica de meu pai. Na verdade, eu não achava, eu tinha absoluta certeza .
Todas as noites, depois que Papai e Mamãe se acomodavam em suas camas para dormir, eu me levantava pé ante pé e ficava de tocaia atrás da porta da oficina, na esperança de surpreender os duendes passeando pelas prateleiras ou conversando e fazendo algazarra na ceia da meia noite, com suas touquinhas e roupinhas coloridas. Achava que eles arquitetavam planos durante a ceia e eram exatamente esses planos, que me interessavam. Minha intenção era me juntar a eles nas aventuras noturnas, ao invés de ficar perdendo meu precioso tempo dormindo.
Todas as noites, depois que Papai e Mamãe se acomodavam em suas camas para dormir, eu me levantava pé ante pé e ficava de tocaia atrás da porta da oficina, na esperança de surpreender os duendes passeando pelas prateleiras ou conversando e fazendo algazarra na ceia da meia noite, com suas touquinhas e roupinhas coloridas. Achava que eles arquitetavam planos durante a ceia e eram exatamente esses planos, que me interessavam. Minha intenção era me juntar a eles nas aventuras noturnas, ao invés de ficar perdendo meu precioso tempo dormindo.
Quando o sono começava a tomar conta do meu corpo, eu tentava resistir o máximo possível, até ouvir as doze badaladas. Então pulava imediatamente da cama e ficava de longe olhando, escondida. Tinha certeza que eles apareceriam , então não podia fazer a bobagem de pregar o olho. Lá pela madrugada , com o corpo já tomado pelo torpor e sono, eu deitava na cama para aguardá-los mais confortàvelmente e, invariàvelmente, caia nos braços de Morfeu e acordava pela manhã de péssimo humor.
Eu sabia que os duendes eram muito astutos, era preciso ser mais astuta que eles. Sabia que tinham várias técnicas para não serem percebidos no mundo dos homens. Tinha lido sobre isso num livro de duendes quando fui à biblioteca do Meier com minha mãe. Eles usavam algumas técnicas simples como, por exemplo, transitar em horários pouco usuais aos moradores da casa. Tinham também técnicas mais sofisticadas, como a mimetização, por exemplo. Sempre achei essa técnica muito moderna e misteriosa. Às vezes gastava horas imóvel , observando os lagartos mudarem de cor.
Certa noite , no auge da excitação e curiosidade, decidi ficar de tocaia até a hora do café da manhã . Quem sabe não os pegaria usando a torradeira ou mimetizados em uma das saias estampadas de minha mãe ? Foi uma longa noite. Devo ter tirado umas sonequinhas curtas, nada porém que atrapalhasse a vigília. Quando o sol já despontava no horizonte , me deixei levar pelo sono exausta e decepcionada, pois eles, mais uma vez, não colocaram o nariz pra fora .
No dia seguinte, ou melhor, naquele mesmo dia à tarde , dormi durante a aula na escola. A Professora mandou chamar minha mãe. Foi um dia muito tenso. Meu sono virou o assunto do dia na família. Eu não gostava de virar o assunto do dia em casa . Na escola então, nem se fala! Na escola só gostava de ser assunto quando falava poesia para os colegas no pátio. Eu ficava muito nervosa antes, mas na hora H sempre falava direitinho e nunca esquecia nenhum verso do poema. Agora, verdade seja dita, ficava bem mais feliz quando tudo acabava e ganhava o beijo da minha mãe.
Voltando ao assunto daquele dia. Minha mãe não conseguia compreender o que tinha acontecido comigo , pois eu era muito boa aluna, não dava problemas e tinha ido dormir cedo na noite anterior. Bem, falemos baixo, isso era o que ela pensava, a gente sabe que não foi bem assim. Não tive coragem de contar a verdade para ela. Achei que minha mãe passaria a vigiar a minha vigília e essa vigília ao quadrado atrapalharia muito os meus planos com os duendes.
Voltando ao assunto daquele dia. Minha mãe não conseguia compreender o que tinha acontecido comigo , pois eu era muito boa aluna, não dava problemas e tinha ido dormir cedo na noite anterior. Bem, falemos baixo, isso era o que ela pensava, a gente sabe que não foi bem assim. Não tive coragem de contar a verdade para ela. Achei que minha mãe passaria a vigiar a minha vigília e essa vigília ao quadrado atrapalharia muito os meus planos com os duendes.
Uma outra vez escrevi com cuidado um recado e deixei ao lado do rádio de ouro, tão logo meu pai se retirou da oficina. O recado era endereçado ao duende que mais nos freqüentava e que parecia ser o preferido de meus pais . Eu acho até que ele era Chefe dos outros duendes. O nome dele era Júlio Louzada. Disse a ele que passaria a dormir direitinho e que seria uma boa menina o resto do ano, caso ele aparecesse para mim , pelo menos um pouquinho. Fiquei horas sentada com as perninhas cruzadas diante do rádio de ouro. Meu pai adorava aquele rádio. A marca dele não me lembro, mas o formato dele era mais ou menos assim:
Essa parte redonda era de um tecido florido, caramelo brilhante. Quando os raios de sol batiam nele, os fios de ouro reluziam. Um dia ouvi minha mãe dizer que o nome do tecido de ouro era jacar. Perguntei a ela como se escrevia e ela escreveu : jacquard, assim, desse jeito esquisito. Fiquei imaginando se aquele brilho não seria o reflexo do pote de ouro que os duendes guardavam no final do arco-iris mas, para admitir isso, eu teria que admitir, também, que minha casa ficava no final do arco-íris e isso me confundia um pouco . Como uma casa tão importante, que ficava no final do arco-íris, não tinha uma enorme fila de gente na porta para fazer visitação? Isso me deixava muito intrigada.
Outra coisa que me intrigava muito, era a voz do Duende Chefão. Quando esse Duende falava, a voz dele era tão forte , tão forte, que o tal do jacquard sacudia ao som dos graves e agudos e desde que minhas mãos sentiram aquela sonoridade pela primeira vez, eu passei a escrever sobre aquele duende com letra maiúscula, assim: Duende! Eu colocava minha mãozinha sobre o pano para sentir as nuances de sua voz e pensava:
- Nossa, que voz bonita e forte a desse Duende ! Algum dia queria ter uma voz assim, para todo mundo me ouvir .
Toda noite eu apoiava levemente minha mão sobre o pano para sentir a voz tonitroante do Duende e ficava imaginando como seria ele: gordinho? Baixinho com um chapéu de ponta fina? Será que usava sapatos pretos longos como os do Pateta? Um aventalzinho branco? Será que na verdade era um gigante igual ao meu pai, que se passava por Duende para conhecer a vida deles? Será que eu poderia um dia usar o mesmo truque?
Certa vez, cansada da indiferença do grandão e de todos os seus coleguinhas, deixei ao lado do rádio um pedaço de bolo branco com glacê de limão , cortado em formato de losango. Atenção. Esse não era um bolo qualquer. Eu o tinha trazido da quermesse da igreja de Nossa Senhora da Piedade. Era o meu bolo preferido e minha cartada decisiva. Duvido que eles nao aparecessem para comer! Eu os veria, finalmente, e a entrega do meu bolo teria valido a pena. Meu receio era que eles , na algazarra, não percebessem o bolo, o que além de não atingir meu objetivo específico, ainda propiciaria uma segunda bronca da minha mãe , quando ela visse o bolo que tinha comprado para mim com tanto carinho, sendo devorado pelas formigas.
Vou lhes confessar uma coisa . Esse foi um gesto de uma criança desesperada. Foi talvez o mais radical, contundente e veemente gesto de súplica , generosidade e risco de toda a minha infância. Só eu e talvez, minha mãe, poderíamos avaliar o significado daquele gesto. Ela era a única pessoa que conhecia a importância daquele bolo para mim . Às vezes ia comigo à quermesse cansada. Não era fácil chegar lá. Subíamos duas ladeiras enormes, mais a escadaria da igreja e lá tínhamos que procurar o melhor entre as barracas. Ela sabia o significado daquele esforço. Além do mais, aquele daquele dia, não era apenas um bolo losango com cobertura de limão gostoso. Era o mais especial de todos, pois tinha sido feito por D. Ligia , a que melhor sabia fazê-lo e tínhamos comprado na quermesse do dia da festa da própria Nossa Senhora da Piedade , ou seja, não compramos numa quermesse qualquer da igreja , compramos na quermesse dela, a Nossa Senhora, era o melhor de todos os bolos do mundo e bento pela melhor das Santas. Convenhamos, o plano era perfeito . Parti para ele cheia de fé. Tinha certeza que , daquela vez, eles nao resistiriam.
Aquela foi a noite de vigília mais longa de toda a minha vida. Foi difícil ficar acordada. Eu tinha brincado muito na quermesse e estava bastante cansada. O mais importante, no entanto, é que eu sabia que eles estavam por lá, inclusive o grandão. Tinha ouvido sua voz , como de hábito, na hora da ave maria.
Foi uma noite excitante, mas também meio triste aquela. Claro, até então não sabia que teria uma noite muito pior alguns anos mais tarde, quando minha mãe teria que se desfazer dos meus gatos por pressão de meu Pai que um dia bradou: Os gatos ou eu !
Isso, no entanto, é uma outra história.
Quando percebi que os duendes não viriam, comecei a ter pensamentos estranhos que me deixaram insegura. Comecei a achar que eu não era uma menina boa, que eu era insignificante, algo assim como o que minha mãe pensava das lagartixas, que matava com horror e medo. Por que não merecia daqueles duendes nenhuma atenção ? Eu já me achava às vezes sem a devida atenção de meu pai, às vezes até de meus irmãos, especialmente quando eles se esqueciam de me bater, era algo assim como se eu fosse invisível, transparente. Eu fiz tudo que sabia de melhor para que me dessem um cadinho de atenção e, com o bolo, tinha esgotado toda a minha criatividade e poder de fogo.
Isso, no entanto, é uma outra história.
Quando percebi que os duendes não viriam, comecei a ter pensamentos estranhos que me deixaram insegura. Comecei a achar que eu não era uma menina boa, que eu era insignificante, algo assim como o que minha mãe pensava das lagartixas, que matava com horror e medo. Por que não merecia daqueles duendes nenhuma atenção ? Eu já me achava às vezes sem a devida atenção de meu pai, às vezes até de meus irmãos, especialmente quando eles se esqueciam de me bater, era algo assim como se eu fosse invisível, transparente. Eu fiz tudo que sabia de melhor para que me dessem um cadinho de atenção e, com o bolo, tinha esgotado toda a minha criatividade e poder de fogo.
Chorei muito aquela noite . Não conseguia compreender o que faziam eles de tão importante lá dentro , que não podiam sair nem por um segundo para atender ao pedido de uma criança. Não conseguia entender como teriam resistido ao bolo de D. Lígia. Aquele foi um dia decisivo na minha vida. Eu era muito perseverante e determinada, mas ali desisti , definitivamente, de minhas vigílias . No entanto, aprendi algumas coisas :
1. Aprendi que quando o outro não quer, nao há nada que possamos fazer para atrai-lo.
2. Aprendi que pai e mãe são desatentos às vezes , mas pelo menos nos olham com aquele olhar especial, nos colocam no colo , zangam quando fazemos bobagem, enfim, nos enxergam e nos ouvem de algum modo . OK, às vezes temos que gritar para isso, mas acabam nos ouvindo.
3. Aprendi que duendes são completamente indiferentes aos nossos apelos e à nossa presença . Não nos amam mesmo e isso dói.
4. Aprendi que até Nossa Senhora da Piedade , vez por outra, também é surda e indiferente às nossas súplicas e preces. Talvez seja muito ocupada, como minha mãe quando tínhamos visitas.
5. Aprendi que decepção e desamparo são sentimentos desagradáveis que acometem crianças, mesmo as bem amadas , desde muito cedo e que nossos pais nem sempre tem alguma coisa a ver com isso.

