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domingo, 21 de dezembro de 2008

O Mestre-sala dos Mares

Ao lado mais um dos objetos concebidos para o espetáculo dos 60 anos do Ourives do Palavreado, Aldir Blanc, inspirado na música " O Mestre-Sala dos mares" que ele fez em parceria com João Bosco.

Essa belíssima canção foi composta pela dupla em homenagem ao marinheiro João Cândido, que entrou para a história como O ALMIRANTE NEGRO, lider da Revolta da Chibata, ocorrida em 1910 .
Consta que João Cândido sobreviveu aos maus tratos na prisão , mas enlouqueceu com a memória do massacre imposto aos seus companheiros e foi internado num hospital para doentes mentais. Tuberculoso e na miséria, conseguiu se restabelecer, mas foi perseguido constantemente. Morreu no Entreposto de Peixes da cidade do Rio de Janeiro, sem patente, sem aposentadoria e até sem nome.

Sempre que ouço falar em Hospital para Doentes Mentais, me vem à cabeça a imagem da imobilização dos pacientes, especialmente a imagem da "camisa de força", instrumento de imobilização felizmente proibido atualmente , que quase me fez desistir da carreira de Psicóloga nas aulas práticas de Psicopatologia que tínhamos no Pinel e no Hospital do Engenho de Dentro. Não há nada mais chocante do que ver um ser humano que não enlouquece por vontade própria, imobilizado por aquele instrumento de tortura. Na época do espetáculo , quando soube que Aldir também havia trabalhado no Hospital do Engenho de Dentro , decidi fazer uma espécie de "laboratório" e voltei lá. Chegando ao Hospital fui informada que na semana seguinte seria inaugurado um Museu. Perguntei se tinham uma camisa de força exposta. Tinham. Pedi para rever , proibido! Só na inauguração. Vencidos os caminhos burocráticos de praxe, me deixaram ver a única camisa remanescente. Lá estava ela no seu melhor lugar, o de peça de museu! Fiz a viagem de volta para casa experimentando o mesmo sentimento de horror que experimentei aos 18 anos de idade , quando vi pela primeira vez na vida , um ser humano deitado no chão imundo do hospital, imobilizado por uma coisa daquelas. Passados alguns dias, a imagem que concebi para esta música foi a de uma camisa de força, com gola de marinheiro , ostentando no "nó cego" dos braços as insígnias de Almirante. Colocado o último detalhe da camisa, alguma coisa ainda me deixava insatisfeita. Dimas Malachini , querido companheiro da Oficina de Objeto e Escultura de Lia do Rio , se solidarizou ao meu mal estar e ficou junto comigo, de longe , observando o objeto. Tentávamos adivinhar o que estaria faltando para que ele "se completasse". Subitamente ele caminhou em direção ao objeto, pediu licença, arrancou a camisa da parede e saiu arrastando a camisa pelo chão imundo da oficina . Depois dos maus tratos e do nosso abraço comovido , estava pronta a homenagem a João Cândido e à dupla de compositores .

Importante ressaltar que só recentemente, no dia 20 de novembro de 2008 , dia da Consciência Negra, o Presidente Lula e o Ministro da Igualdade Racial, Edson Santos, inauguraram a estátua em homenagem ao Almirante Negro na Praça XV , em solenidade sem representantes da Marinha e do Ministério da Defesa. Como noticiado pela imprensa , o Presidente comparou o homenageado a outros personagens da história brasileira que enfrentaram militares- o beato Antônio Conselheiro, líder de Canudos, no início da República; Gregório Bezerra, comunista torturado em 1964; e o guerrilheiro Carlos Marighela, morto em 1969 - e disse que os brasileiros "precisam aprender a transformar seus mortos em heróis". Durante a cerimônia , João Cândido foi chamado como ficou conhecido , de "Almirante" , embora a Marinha o considere apenas líder de um motim contra a hierarquia. Devido a essa resistência, a estátua de João Cândido levou alguns anos no Museu da República antes de ser deslocada para a Praça XV.

João Cândido foi anistiado em 24 de julho de 2008 graças a um projeto da senadora Marina Silva do PT do Acre, que foi aprovado pelo Congresso e sancionado pelo Presidente Lula.

A letra original da canção foi censurada na época e algumas alterações foram feitas para que pudesse ser gravada.

Abaixo o Kit do Almirante Negro com a caixa e o bloco de notas, realizado para presentear o público, com foto do objeto tirada por Juliana Ennes. A seguir a letra original censurada e a letra no formato que é cantada atualmente e que consta no verso da caixinha do Kit.



O Mestre-Sala dos Mares ( Letra censurada )

João Bosco/Aldir Blanc

Há muito tempo,
Nas Águas da Guanabara,
O Dragão do Mar reapareceu,
Na figura de um bravo marinheiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como o Almirante Negro,
Tinha a dignidade de um mestre-sala
E ao acenar pelo mar, com seu bloco de fragatas
Foi saudado no porto
Pelas mocinhas francesas,
Jovens polacas e por batalhões de mulatas.

Rubras cascatas
Jorravam das costas dos negros
Pelas pontas das chibatas,
Inundando o coração
De toda a tripulação
Que, a exemplo do marinheiro,
Gritava: não.

Glória aos piratas,
Às mulatas,
Às sereias,
Glória à farofa
À cachaça,
Às baleias...

Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais.

Salve o Almirante Negro,
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais


O Mestre-Sala dos Mares ( Letra gravada)
João Bosco e Aldir Blanc

Há muito tempo nas águas da Guanabara
O Dragão do Mar reapareceu
Na figura de um bravo feiticeiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como o Navegante negro
Tinha a dignidade de um mestre-sala
E ao acenar pelo mar, na alegria das regatas
Foi saudado no porto
Pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas

Rubras cascatas
Jorravam das costas dos santos
Entre cantos e chibatas
Inundando o coração
Do pessoal do porão
Que, a exemplo do feiticeiro, gritava, então:

Glória aos piratas, às mulatas, às sereias,
Glória à farofa, à cachaça, às baleias,
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais.

Salve o Navegante Negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais

(Mas, salve...)

Salve o Navegante Negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais

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