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sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Crônica de Eldorado dos Carajás

Crônica de Eldorado dos Carajás
                       Vera Mello

os homens dos camburões
matam os sem terra
aos magotes
matam crianças
gestantes
mulheres sem um vintém
          matam miseráveis do bem!
conhecem o seu lugar
de cor, de frente, no avesso
e, no entanto, dos mandantes
nunca sabem o endereço.
Os chefões estão por ai
andam entre nós sorridentes
nos palácios, nos comícios
tomando chá nos salões.
Os gabinetes
conhecem as estatísticas
menos o nome dos mortos
dos pais, dos filhos, parentes

vivem de cara lavada
na cara de todos nós
Já já vão matar os pedintes
os sem escola, os sem teto.

Os sem pão já foram mortos                                                                                                                           de fome naturalmente! 

Alguns terão morte morrida,
outros a morte matada
e os mandantes, como sempre
esses não sabem de nada
não sabem quem eles são
se deixaram a sua amada
se sonhavam com o feijão
para fazer feijoada.
Com madeira sucateada
do cabo da foice e da enxada
suas caras de pau são lavadas                                                                                                            com o sangue de agricultores 
que lutaram pelo chão.
Estranho país o meu,
que trata assim o seu filho!
Estranha essa minha pátria
mãe degenerada, doente.
Durante o dia ela educa
para ser um delinquente,
um marginal perigoso,
sem culpa, cheio de tara
e logo à noite  nos deixa
sozinhos no travesseiro
sem acalanto , cantiga
sem beijo de boa noite 

          com muita vergonha na cara.  


Improvisando com Chet Baker

Chet , Chet , Chet , Chet
onomatopéias de vassouras
invadem o silêncio da noite
a voz desliza por puro prazer
no tapete mágico
de veludo macio
convidando ao improviso

Ti be di do , ti be di do ,
Ti be di do , ti be di do ...

Ele e elas se divertem,
Ti be di do , Chet! Chet!
Ti be di do , Chet! Chet!

Intrusa silenciosa
ouvindo essa linha cruzada,
sou pega em suspiros
com a saia levantada
sobre os poéticos bueiros,
em frente a uma loja da Madison,
perdida em becos escuros

Ti be di do, Chet! Chet!
Ti be di do, Chet! Chet!

A conversa insufla um pouco de vida
e de espírito,
ao meu mundo
Na mesa de um bar do Village
servida por um garçom cubano,
sorvo um vinho do Napa Valley
enquanto um casal de amantes
adentra, apressadamente,
um velho yellow cab

Ti be di do, Chet! Chet!
Ti be di do , Chet! Chet!

No balanço do bebop,
Dancing on the ceiling
de velhos solares da alma
me vejo dizendo adeus
a antigas disritmias,
às recentes desafinações dos meus dias

E no melhor da viagem,
como um maestro
selvagem,
te vejo invadindo a pauta
marcando uma nota
evitada
no meu sonho de harmonia

Piano introduz novo tema
e eu já meio aturdida
semiconfusa
entre fusas
sou pega por Chet ao som de...
How long has this been going on?!

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Cão de casa

Cão de casa

Nem ligo quando ele explode,
geralmente é sem razão,
fala besteira, bobagem,
esbraveja,
fica cego como um cão!

Raivoso não mede palavras,
parece sem coração,
não adianta gemer,
pedir absolvição.

Teimoso,
mesmo se errado,
nessa hora não tem jeito
melhor mesmo é recuar
e deixar ele latir
pra aliviar a tensão.

Mais tarde com muita calma,
se comove,
se enternece,
me despe,
me lambe toda.
Como é gostoso o meu cão!

A Casa Verde

A Casa Verde e' uma casa-estufa na serra de Petrópolis, cercada de flores e vegetacao generosa. Minha amiga Zeze' mora la'. Lá me refugio e me recupero dos males da vida na companhia dela e de amigos queridos. Zezé e a Casa Verde são como faces de uma mesma moeda. Um dia falarei melhor sobre Zezé. Por hoje fica a minha gratidao e o poema.

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Entre gatos e pincéis
começo a urdir a tela da Casa Verde.
Como fogos de artifício
explodem as memórias nos aromas dos cafés,
dos pães, dos doces, das hortaliças.
No umbral de um novo tempo
harmonioso varal de sons e silêncios
exibe a realidade dos meus vincos
e a sabedoria dos meus vínculos
Ao ritmo de Chet Baker
nada falta, nada sobra
na música, no vento,
na chuva, no vinho,
na arte, no alento.

Com toques leves e precisos
integro sutilezas, imagens, retalhos,
vácuos profícuos, rasgadas esperanças.
Tudo parece ao mesmo tempo
calmo e pulsante,
pungente e diáfano,
conhecido e desconcertante.

Acariciada por pássaros, flores e amigos
despida de imagens e ruídos da modernidade
a alma na Casa Verde andarilha
em estado pagão de consciência
num abrigo cósmico tangível
que liga a rua do Big Bang
à nossa saudável e possível inocência.

Utopia animal

Cansei do enigma do meu e do teu sintoma,
cansei da ignorância da palavra que me determina,
cansei da busca de compromisso entre eu e meu desejo
cansei da busca de verdades indecifráveis e improferíveis
não quero saber de códigos, nem de metáforas
cansei de estar grávida de significantes
Quero a verdade direta do olhar dos moços de frete de Pessoa
quero a verdade da dor do meu pé torcido
quero a verdade do silêncio insolente
quero a verdade do carinho casual e delinquente
verdades quase referentes
Desejo hoje o sensório e o tangível
estes são os ‘issos’ com os quais nessa manhã quero conviver
sem a tentação de decifrá-los
Hoje quero me sentir livre da doença,
da causa e de seu sintoma
gargalhar , junto com Deus, na manjedoura do tempo
e enviar para o diabo todo o enigma!

Calota polar

Sinto uma água sólida no peito
bem no lugar onde um oceano havia
acho que o amor dele se foi e deixou ártico
um coração enseada que antes lhe cabia.

Me pega pela mão

Me pega pela mão.
me leva para ver os lírios
de um jeito que eu nunca vi.
Deixe que eu sinta no ar
o cheiro dos eucaliptos
me ensina a te ver de novo
com os olhos da minha criança
depois me roda, me dança

Me pega pela mão
deixa que eu sinta na minha
todas as linhas da tua
em cada curva da rua
Me mostre de novo os rios,
as florestas
as flores do campo crescendo
as dormideiras, bromélias
as borboletas em festa,
me dê de comer jamelão
me presenteie um bouquet
feito de hortências de estrada
ou de bocas-de-leão

Me pega pela mão
me mostre o seu mundo de ontem,
me fale dos seus amigos,
das gentes da vizinhança,
quando você era criança
E no final desse dia
depois que o sol for embora
me desvista pra dormir
onde eu possa ouvir a noite
e regue de sêmen o jardim
que mora no meu avesso
pra que brote essa mulher
que eu quis ser
desde o começo.

Brincando com fogo

Vamos brincar de amar
peça a cama inconsequente
que eu peço o teu coração
mostre a tara desvairada
que eu te mostro a minha alma
Se é pra brincar, brinquemos
cada um com seus disfarces
cada um com suas armas

Amando nas estrelas

As manhãs renascerão
o padeiro fará pão
um de nós não estará lá
nem pro café,
nem pro bolo,
nem pro beijo,
nem pro colo,
nem para o olho no olho

Nossa ausência iluminada
por luzes de alma lavada dirá :
- Olá! Ao luar...
se for para mim querido
já aprendi a orar
se for pra você meu anjo
olhe para o céu distante
aquela estrela cadente
mergulhando em pleno ar
sou eu em acrobacias
cheinha de alegria
tentando entrar sem ser vista
pelo seu teto solar

É preciso mais que saudade
para se amar nas estrelas
é preciso calma, coragem
fazer da dor homenagem
e perder o medo de vê-las

Tecendo na masmorra

Não sou de correr da raia
nem quero morrer na praia
no alinhavo me esmero,
me embaralho, desespero,
mas nunca largo da agulha
que está sempre em uso
tecendo no bastidor.

Aqui nesse meu castelo,
tem sapo, tem príncipe, espelho
tem moura torta, alfinete
Coringa , Pingüim , Gepetto
heróis, anti-heróis e desvãos
Nos vãos dos seus corredores
choram Cinderelas, princesas
Brancas de neve, rainhas,
boas ou más, não importa
e choram também Luluzinhas,
com medo da bruxa má.
Deixei de fora o Pinóquio,
que nem entra em solilóquio,
quanto mais na hora H.

Com todos na mesma trama
bordo os enredos na lama
que vai do poço, pra cama
do calabouço, ao altar.

Homem grande pelado

Tinha um homem pelado pela casa
Não!
Tinha um homem muito pelado pela casa
Eu disse muito,
do verbo bastante,
do verbo todo,
digo homem do gênero grande,
do gênero adulto.
Foi um espermatozóide
entrado de óvulo
um bebe suado de mijo
uma criança brincada de gente.

Tem um homem muito pelado andando pela casa
um homem de grande glande,
olhar genuíno ,
um homem a quem amo
enquanto grande ,
um homem que amei
desde menino.
Oi, filho!

Rito de Passagem em rimas

Rima s.f.
Recurso usado por quem sofre, pra fingir que
é capaz de controlar a dor .

Obrigada pai, pelo amor à poesia , que me indicou o caminho de pôr o caos em palavras. Obrigada mãe, pelo amor ao ritmo, que me ensinou a ouvir o tempo do coração. Obrigada a ambos pelo amor à música nessa fusão... de pulsações nos compassos , de narrativas melódicas, de harmonia nos acordes da minha própria canção. Obrigada a você Arnaldo, incansável anjo da guarda, pelo apoio que me dá quando, de olho no espelho, coloco meu dedo em riste em direção ao nariz, sem deixar barato ao cheiro. É tanto caco, tanta vida, tanta emoção mãe... e eu tô aqui revivida,com energia ainda para colar os pedaços.
Tem sido difícil mãe, sacrificado meu pai! Sensibilidade à mostra, em carne viva, teimosa ... é difícil de levar largada nesse mundão! Tem de tudo por aqui. Tem amor, dor , confusão... e tem até muita gente curiosa de se ver. É preciso estar atenta, com a porta entreaberta, escancarada? Jamais! E a minha estava aberta, mãe...e eu deixei esparramar tudo aquilo que vi dentro, que nem sei como brotou. Parecia um grande amor, parecia só desejo, parecia déjà vu, parecia até às vezes que eu sempre estivera ali. Deu uma vontade danada de me virar pelo avesso e amar em profusão, pude não!
Tinha um “day after” estranho, que eu não podia entender, como se amar de novo pudesse comprometer. Tinha grito, baixaria, raiva logo no outro dia! E quanto mais eu queria, com mais força a raiva vinha, como se tara e paixão fossem coisas do demônio... e a mulher, o patrão!. Tinha defesa, desleixo... e um jeito muito esquesito de arrematar os desfechos.
Fiz muitos castelos não, mãe! Só queria ter a roupa retirada devagar , ou com tara de apaches numa noite de luar, ou só as pressas, quem sabe? Na ânsia de apaixonar. Só queria amor inteiro, que desse pra rir e chorar, desses que exigem coragem pra se poder enfrentar, mas que é preciso fluir, pra conferir no que dá. Deixar escorrer o mel, pra degustar o que resta... e se tiver que morrer, que se possa dar adeus mantendo o gosto da festa! E se a dor for fatal, como alinhavo final, quem sabe um cartão postal retribuído com flores? E as histórias se completam... e estão salvos os amores!

Obrigada Adélia , Drummond, Lucinda ! Que seus versos ganhem vida no coração dos aflitos, dos que expropriam a memória do ardente calor dos corpos, do sabor dos beijos, da sonoridade das palavras e vivem de lá pra cá, sem bússola, sem radar, sem clareza do que há dentro, sem querer elucidar e que inventando eufemismos para os fantasmas da alma, sem saber suavizar, confundem F com P na luta pelo poder, chamam ódio de amor, indelicadeza de sinceridade, ansiedade de tesão , egoísmo desmedido de saudável individualidade! E olha, também sou de aquário, foi muito trabalho árduo nos labirintos do peito, para enxergar tudo isso, desse outro jeito.
Mãe, Pai , obrigada mais uma vez, por terem me dado a arte como alternativa à loucura, por terem me dado o diálogo como alternativa ao silêncio, e o profundo respeito à condição humana, como alternativa ao desprezo.
Errei muito no caminho, mãe! Tentei aceitar o possível e vivê-lo de bom grado. Talvez tenha confundido, talvez tenha me enganado, talvez tenha me omitido. Acreditei no empate, entrei na paixão desabrida e quando dei conta do engano, soneguei minha ternura, escondi delicadeza , convertí minha doçura em raiva de mulher presa. Guardei tanto que de bom fora melhor ter trocado, que isso dói muito mãe, dói mais que ser rejeitado. Dói de não ter saído, dói de ter sido guardado, dói de não ter podido mostrar toda a minha face. E essa foi a minha parte! É difícil ser feliz nesse mundo carcomido, neoliberal, consumista. Hoje no pocker do sexo, o amor parece não ter nexo e nem cacife bastante para ter lugar à mesa. Passado, presente e futuro, estados do tempo e da alma, se comprimem numa noite e ficam ali conformados, cúmplices da inconsequência. Os seres humanos mãe, perderam individualidades; são números, estatísticas, desprovidos de vontade. E vamos todos morrendo, em rios de vinte centímetros de média profundidade! Afogados nos abismos das couraças corporais implorando uma massagem, das palavras interditas, das verdades ocultadas, dos sentimentos falidos e nus, caídos à beira da estrada.
É hora de trabalhar! Vou pegar esses caquinhos espalhados pelo chão,olhar cada qual direitinho, sem medo da revisão. Se não servir para essa, serve pra outra ocasião. Vou catar os espartilhos, que eu gosto de deixar, calcinhas e soutiens que eu mal cheguei a usar, dos muitos momentos de amor que eu esperava encontrar e fazer uma fogueira, cercada das flores vermelhas que eu sonhava ganhar. Enquanto estiver queimando, eu vou me sentar do lado e invocar o Arnaldo para vir me ajudar e vou chorar como louca, pensando naquela boca que eu ainda queria beijar. Vou pensar também ainda, naquela vontade que eu tive e não pude realizar, de pegá-lo pelos pés e lamber cada dedinho, sem pular nenhum dos dez. E repetir igualzinho com cada dedo da mão, com cada articulação,com cada marca da vida que eu visse pelo caminho e que, por intuição, imaginasse ser eco de uma dor do coração.
Terminada a excursão pelos abismos da alma, na minha imaginação, implorarei de joelhos , aquele último beijo que ele deixou de me dar e implorarei ainda pra que faça amor comigo, tendo meu corpo de abrigo pra gente se apaziguar.
Depois da força da imagem, feito o rito de passagem, procurarei relaxar. Vou andar por Ipanema ,sentir o cheiro do mar, soltar o meu diafragma pra que possa respirar e quando puder vou buscar experimentar outros rumos, visando me adaptar a esse bolsão de consumo das novas formas de amar.
Pra começar vou seguir o exemplo da Elisa . Vou fazer uma safena e “abrir as inscrições para os machos de plantão que vivem a me desejar. Vestirei vermelho escarlate e torcerei pra que matem o outro que ainda está lá”, não sem antes implorar a todos os padroeiros, que me livrem por inteiro dos amores dos amantes que brincam com o verbo amar. Se apavore não Arnaldo, tou falando tudo isso só para desabafar! Sei bem onde tenho os pés , ainda que esteja sem chão.
Hoje eu vou dormir com a Pepona, meu bonecão de algodão. Ela é macia, receptiva e, sobretudo, inofensiva! Não é regressão não mãe, é só um doce descanso antes da volta ao timão. Chega de amor oprimido, carinhos de ocasião, chega de brincadeira com meu saudável te-são!
Boa noite pai! Boa noite mãe! Boa noite meu filho! Mamãe andou à deriva, mas já avistou o cais. Conseguiu sobreviver, sem fazer você sofrer , sem perder a lucidez ou dizer : amor? Nunca mais!!! (março 1995)

Textos antigos

Queridos,

Por sugestão de alguns amigos, decidi divulgar a partir de hoje textos antigos, cujas emoções fizeram parte , um dia, da minha cena cotidiana. Hoje a maioria já não faz mais, no entanto, sou grata a cada uma delas pelo que deixaram na memória da pele e do coração, e pela oportunidade de crescimento que me proporcionaram. Se hoje estou serena diante de árvore, gente e bicho, é porque devo muito a cada uma delas .
Beijo carinhoso para todos.